COTUCA: Trajetória, Desafios e Avanços

COTUCA: Trajetória, Desafios e Avanços

texto por Gustavo Pestana Godoi (bolsista PIBID Socio/Filo)

 

A experiência de frequentar o Colégio Técnico de Campinas (COTUCA) é uma oportunidade ímpar, uma vez que é uma escola ligada à UNICAMP, uma das maiores universidades do Brasil, no centro de Campinas. Isso gera diversas questões, desde pontos positivos até áreas que precisam de atenção para construir um ambiente mais equitativo e democrático. Desse modo, antes de chegar ao presente, é importante dar alguns passos para trás, para assim compreender como se formou o COTUCA.

 

O colégio é uma das principais e mais conhecidas instituições de ensino da região de Campinas e do Estado de São Paulo. Foi criado em 1962 por meio da Lei 7.655/1962, promulgada em 28 de dezembro, e começou suas atividades em 1967. O COTUCA foi constituído - juntamente com a UNICAMP - a partir de uma busca do governo com o intuito de levar para o interior instituições de ensino estaduais. Sendo um colégio técnico, o COTUCA possuía os cursos de Mecânica, de Eletrotécnica e de Alimentos; hoje ele tem 10 opções de cursos técnicos. 

 

A principal demanda que se coloca em um primeiro momento é acerca da forma de ingresso no colégio. Devido à sua estrutura física limitada, a escola possui um número restrito de vagas. Consequentemente, foi adotado o processo de vestibulinho para admissão dos alunos, sendo a prova dividida em duas partes. A primeira parte é composta por questões objetivas de caráter classificatório, com 12 de Língua Portuguesa (análise de texto e gramática), 12 de Matemática e 12 de Ciências, subdivididas em 6 de Biologia, 3 de Física e 3 de Química. Já a segunda parte é composta por uma redação eliminatória e classificatória. 

 

A partir desse fato, fica evidente que o critério de avaliação para ingressar no colégio privilegia historicamente determinado estoque cultural, característica que, como demonstrado por Pierre Bourdieu, já acompanha o ensino formal no geral, uma vez que é nesse espaço que se constrói o “monopólio da violência simbólica legítima” (BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 21). Porém, tal processo aparece mais explicitamente no momento em que, para a admissão em uma escola pública, é valorizado um tipo de conhecimento facilitado pelo acesso a um capital cultural e por maior capital econômico, por exemplo, alunos que vêm de escolas particulares e/ou têm acesso a cursinhos preparatórios para o vestibulinho, algo comum na região de Campinas. 

 

Desse modo, é fundamental apontar um processo bem retratado pelo antropólogo Nicolau Bandera (2015) que se estrutura em torno do vestibular. O pesquisador analisou de que modo o vestibular para o ingresso no IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo) contribui para a criação de uma crença de “dom” e “mérito” nos alunos, chegando à conclusão bourdiana de que o vestibular no colégio contribui significativamente para a reprodução da desigualdade, tendo um grande valor simbólico para os alunos justificarem seu ingresso através da concepção de “esforço” e/ou “inteligência”. 

 

Aqui chegamos no tempo presente. Em meu primeiro dia de estágio, o professor que me orienta no Colégio, após uma conversa sobre quais eram minhas pretensões como futuro professor e qual era minha perspectiva acerca da sociologia, apresentou-me um problema que o COTUCA vem enfrentando. Em 2018, partindo da adoção de cotas étnico-raciais e Vestibular Indígena pela Unicamp, a direção do colégio iniciou uma discussão sobre ampliar a diversidade de seus alunos e democratizar o acesso ao seu ensino. O professor contou que até aquele momento a maioria absoluta dos alunos haviam realizado o Ensino Fundamental em escolas particulares, apesar da existência de uma política de bonificação por pontos desde 2013 baseada no Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS). 

 

No ano de 2020 foi aprovada uma política de cotas mais efetiva e significativa, sendo o processo de seleção de vagas dividido em 3 grupos. O Grupo 1 (G1) compreende 35% das vagas e prioriza a convocação de candidatos autodeclarados Pretos, Pardos ou Indígenas (PPI) provenientes de escolas públicas brasileiras (EPu). Caso as vagas não sejam preenchidas, são convocados candidatos PPI e/ou EPu da lista de ampla concorrência. O Grupo 2 (G2) também possui 35% das vagas e convoca, após o G1, os próximos candidatos EPu na lista de classificação, independentemente de raça/etnia. Se as vagas não forem preenchidas, novamente são chamados candidatos PPI e/ou EPu da lista de ampla concorrência. O Grupo 3 é a Ampla Concorrência, contemplando 30% das vagas e sendo preenchido após os grupos anteriores, incluindo candidatos de todos os tipos de inscrição, incluindo aqueles que têm direito às vagas reservadas nos grupos 1 e 2. 

 

Evidentemente esse foi um passo fundamental para tornar o COTUCA mais popular e combater certa perspectiva essencialista de desigualdade, uma vez que a política leva em consideração fatores raciais. A pesquisa realizada por Mauricio Ernica e Erica Rodrigues (2020) - desenvolvida através da análise de desempenho de alunos do 5⁰ ano em todas as metrópoles na Prova Brasil - evidenciou que, em condições iguais de nível socioeconômico (NSE), é possível apontar significativas desigualdades de aprendizagem entre os alunos. O mesmo acontece entre pessoas de uma mesma região da cidade, normalmente associada a uma determinada classe social. Os resultados obtidos pela pesquisa são: 

 

“Ao analisarmos grupos de estudantes definidos por NSE, raça e gênero, identificamos uma estrutura de desigualdades estável. Nela, em todos os grupos de NSE, as meninas brancas e pardas são os grupos com os maiores níveis de aprendizagem, sempre próximos, embora com vantagem para as brancas. Os meninos brancos e pardos vêm a seguir, também próximos e também com vantagem para os brancos. As meninas pretas vêm logo após. Por fim, estão os meninos pretos, grupo mais penalizado, com as piores oportunidades educacionais e para quem o aumento do NSE está associado ao menor aumento do nível de aprendizagem” (p. 14). 

 

A partir dos resultados apresentados, demonstra-se evidente que a classe social não é a única condicionante do desempenho escolar, apesar de ser central para uma análise séria, uma vez que raça e gênero são fatores fundamentais para a hierarquização dos alunos pertencentes aos mesmos setores sociais nas instituições de ensino. É importante ressaltar o fato de que pessoas pretas, em especial os meninos, apresentam de modo regular pior desempenho educacional, independente do nível socioeconômico. Tal apontamento deixa clara a influência do racismo estrutural na cultura arbitrária ensinada, portanto na organização do espaço escolar, construído de modo a naturalizar a ideia de que pessoas pretas seriam menos capazes de alcançar o sucesso escolar e inferiores intelectualmente, já que sua aprendizagem seria sistematicamente inferior. 

 

Desse modo, a política de cotas atingiu frontalmente, de maneira imediata, o perfil dos estudantes do COTUCA. Porém, juntamente com essas mudanças na forma de ingresso, vieram problemas significativos relacionados à permanência estudantil dos alunos, especialmente aqueles que estão em posição de vulnerabilidade. Atualmente, há no colégio um grupo que busca tratar dos problemas acarretados pela ausência de uma estrutura institucional que lide com o acolhimento e o auxílio a esses alunos. 

 

Voltando para a conversa com o professor, naquele momento, ele me relatou alguns dos problemas principais que resultaram da política de cotas desvinculada de uma forte política de permanência. A principal dificuldade apontada foi a evasão escolar. O grande nível de desigualdade educacional dos alunos faz com que haja “dificuldade em acompanhar as aulas” para discentes que vieram de condições mais vulneráveis. Isso se dá tanto por intempéries materiais, como morar longe da escola e possuir menos estrutura financeira - alguns alunos precisam trabalhar - quanto questões familiares. Exemplo disso é a falta de apoio, o que pode gerar ausência de motivação e interesse na escola. 

 

Para lidar com tais dificuldades, seria importante que a escola ampliasse seu serviço de apoio ao estudante. Além disso, seria crucial expandir o programa de bolsas de auxílio social, uma vez que ele ofereceria apoio financeiro aos alunos de famílias de baixa renda, como bolsas de estudo, subsídios para transporte e alimentação. Outro ponto fundamental seria o aprimoramento da infraestrutura escolar; o reforço escolar e as monitorias seriam formas significativas de apoio, o que poderia reduzir o índice de repetições e tentar resolver o “descompasso” entre os alunos. 

 

A partir disso, é possível chegar a uma segunda dificuldade também evidenciada no meu primeiro dia de estágio. Após conversar com o professor, nos dirigimos para a sala de aula. Uma coisa que chamou muito minha atenção foi a primeira interação dos alunos com o professor. Depois de ele entrar na sala e colocar as suas coisas sobre a mesa do professor, uma aluna - muito questionadora/participativa - levantou a mão e indagou sobre a ausência de professor/a de português; essa turma não tinha tido aula dessa matéria desde o começo do ano. O professor, sendo franco com os alunos, explicou que a UNICAMP estava abrindo um processo de contratação provisória e que somente no final de abril essa situação provavelmente seria resolvida - o que se concretizou somente no começo de junho. 

 

Essa situação indica três pontos significativos. O primeiro é a situação de fragilidade econômica e estrutural que o COTUCA vem enfrentando nos últimos anos, uma significativa diminuição do número de professores resultante da diminuição de processos de concurso para reposição de docentes, sendo essa uma queixa muito presente no dia a dia do colégio, especialmente na conversa com os professores. Em 2023, os alunos ficaram períodos significativos - mais de três meses - sem professores de português e geografia. Além disso, o segundo ponto é como a estrutura burocrática da UNICAMP pode dificultar a solução de problemas, fazendo demorar questões que podem e, muitas vezes, precisam ser resolvidas rapidamente. Já o terceiro ponto é a relação entre o professor e os alunos, que tem sua dinâmica evidenciada na possibilidade de questionar o professor acerca de questões administrativas da escola. 

 

Em síntese, a trajetória do COTUCA revela a complexidade do cenário educacional, destacando desafios e avanços na busca por equidade e diversidade. Ao longo do tempo, a instituição passou por transformações significativas, desde sua criação em 1962 até as mais recentes políticas de cotas étnico-raciais adotadas em 2020. Embora tenha se empenhado em democratizar o acesso, a análise aponta para questões urgentes relacionadas à permanência dos estudantes, especialmente os provenientes de grupos mais vulneráveis. 

 

Assim, o enfrentamento dessas dificuldades exige não apenas aprimoramentos na infraestrutura e no suporte financeiro, mas também uma reflexão contínua sobre as barreiras estruturais e culturais que persistem no ambiente educacional. O desafio para o COTUCA e instituições similares é não apenas admitir a diversidade, mas garantir que ela seja efetivamente integrada, proporcionando a todos os alunos um ambiente educacional inclusivo e propício ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades.

 

Referências: 

BANDERA, Nicolau Dela. A magia do vestibular: a produção da crença no "dom" entre os estudantes do IFSP. Educação. Santa Maria, v. 40, n. 3, p. 643-654, set. 2015. Disponível em . Acessos em 08 nov. 2023. https://doi.org/10.5902/1984644417104. 

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. 

ERNICA, Mauricio e RODRIGUES, Erica Castilho. DESIGUALDADES EDUCACIONAIS EM METRÓPOLES: TERRITÓRIO, NÍVEL SOCIOECONÔMICO, RAÇA E GÊNERO. Educação & Sociedade [online]. 2020, v. 41 [Acessado 19 Julho 2022], e228514. Disponível em: . Epub 17 Ago 2020. ISSN 1678-4626. https://doi.org/10.1590/ES.228514. 

UNICAMP. Em decisão histórica, Unicamp aprova cotas étnico-raciais no vestibular. [online]. 2017. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/11/22/em-decisao-historica-unicamp-apro va-cotas-etnico-raciais-e-vestibular. Acesso em: 30 maio 2023. 

UNICAMP. PAAIS amplia bônus no vestibular. [online]. 2015. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2015/05/26/paais-amplia-bonus-no-vestibular. Acesso em: 30 maio 2023. UNICAMP. Unicamp aprova adoção de cotas para colégios técnicos. [online]. 2020. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/06/02/unicamp-aprova-adocao-de-cotas-paracolegios-tecnicos. Acesso em: 30 maio 2023. 

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Colégio Técnico de Campinas (COTUCA). Edital do Processo Seletivo Público para Ingresso no COTUCA – 2024. Campinas, 2023.